segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Diz aí, Vinicius


E o saber amar?
A sua Insensatez também é a minha
talvez até os mesmos vícios.
Ah, Vinicius,
sua poesia é tão líquida
quanto os amores que tive,
e sua voz rouca
tão pequena e pouca 
a cantarolar prazeres bêbados
me faz pensar
na figura de um até bom pai
sempre com o copo na mão
bebendo e dando conselhos desconexos
porque o repertório de amor, paixão e sexo
não por acaso inclui pedidos de perdão
– sempre, e devidamente, apaixonados.

Diz aí, Vinicius,
e o saber amar?
se há como dizê-lo...
Com tanto verso e zelo
tu deverias saber ao menos
se é tão possível dizer
quanto convém, antes de tudo, fazê-lo.

E já estou me convencendo
que se dizê-lo é possível
só o seria mesmo nessa forma de cadência
em que tão humana transcendência
me visita nas curvas dos versos seus...

Ah, Vinicius,
cria, canta e faz chover,
com toda sua poesia,
samba de bênçãos do céu.


Escrita em Porto Alegre, 29 de outubro de 2012,
para os 100 anos do nascimento do poeta em outubro deste ano.


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Verbos adequados

Uma verdade substantiva demais não convida, como a mentira o faz, à ação, senão de modo indireto. Posso mentir, posso falsear, posso enganar... modalidades do "mentir" não faltam. Mas quanto à verdade? Como se não pudesse esta ser filha da ação, da criatividade e da fantasia,  permanece num sabe-se-onde-de-ideias imóvel, impassível, a espera de um "falar", "encontrar", "praticar", "revelar" que lhe ponha as carnes... Bobagem! Não está lá, e mesmo esse "lá" não existe, seja  em altura ou profundidade, que não seja a geografia-corpo dessa entidade orgânica discreta movendo-se no mundo que somos. É por isso que arranjei de fazer teatro, escrever poesia - e mesmo ciência e filosofia, desde que sempre e em qualquer instância o seja rompendo com teologias prescritivas acerca da verdade. Foi esse o jeito que encontrei pra (me) verdadear.

sábado, 10 de agosto de 2013

Nos trilhos do filho

Uma vez pai
talvez nem sempre
- é tanto o que se pretende.
Mas filho tem caminho
e segue! e vai!
Então, celebrar sempre.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Primeira solidão

Sua primeira solidão foi aos oito anos. Deixou o grupo escoteiro no fim de tarde morna, e faria novamente o caminho à casa, por si mesmo. Usaria dois ônibus, o que tornava algo complexo. Deveria primeiro ir até o centro da cidade, tomando um ônibus ali mesmo, ao lado da rodoviária, que avizinhava a sede do grupo escoteiro. Uma vez no terminal do centro, um segundo ônibus deveria ser pego. Este o deixaria a uma esquina de casa, e por ter feito duas ou três vezes esse mesmo itinerário, sentia-se seguro. Seguro o suficiente para, naquele dia, dar-se liberdades a uma distração que o fez reparar mais na paisagem.

O trajeto até o centro era o mais plano de uma cidade de poucos altos e baixos. O ônibus passava em frente ao sexagésimo segundo batalhão de infantaria, que impressionava os olhos meninos. O contraste de paredes imponentes, caiadas, reluzindo ao sol, com a interdição opaca de sombras verdes militares, suscitava-lhe imaginação. Em seguida, o trecho da avenida com canteiros centrais pontilhados de palmeiras princepescas dava com a enormidade catedral da arquidiocese. A forma redonda da igreja com telhado de capacete espacial lhe sugeria outras tantas fantasias a respeito das autoridades.

No terminal do centro, o segundo ônibus do trajeto estava roncando sem pressa, posicionado na plataforma. Àquela hora da tarde de sábado tudo ali era vagar e sufoco de diesel queimado. Demoraria, como nas outras ocasiões, alguns minutos para o ônibus partir. O tédio da espera, dessa vez, contudo, não lhe ocorreu. Não deu tempo. Porque ao dar os primeiros passos em direção à plataforma, reparou na praça ao lado do terminal. Não a tinha notado ainda, e o pequeno chafariz ao centro lhe interessou particularmente. Parou. E o chafariz lhe conduziu a atenção ao homem que ajudava a criança se equilibrar na murada, ao lado do casal trocando sorrisos, sentindo o cheiro provável de pipoca exalado por aquele que agora as preparava no seu carrinho de latão, cercado de voos curtos e atrapalhados das pombas da praça... Um mundo lhe nascia ali mesmo, subitamente.

Certificou-se mais uma vez do ônibus estacionado, e conferiu as horas do grande relógio suspenso no teto do terminal. Tinha um tempo mais de espera, acreditou. Avistou novamente a praça como que agradecendo o ensejo apenas, porque sua atenção agora não queria mais surpresas. O olhar afinava pálpebras investigativas. Virou-se para a rua a suas costas: não seria aquela a que conduzia à praça do Hotel Colón? Daria tempo para tirar a dúvida? Não seria perigoso? Poderia fazê-lo? Mas deveria fazê-lo?

Passos tão decisivos quanto apressados. O menino sentia a barriga formigando; o que era fome cedeu à comoção de uma aventura de quadra e meia. Decidiu que o tempo seria suficiente para ir até a esquina apenas, para conferir se ao dobrá-la estaria mesmo lá, em frente à praça, o hotel cujo prédio de modos antigos lhe fazia pensar em preto e branco. Atravessada a rua grande, alcançou a esquina, espichando-se e estancou. Sabia. Era ali mesmo. E lá estava o hotel de paredes marrom desbotado, com bandeiras reverentes, enquanto rapazes uniformizados facilitavam elegantes o ir e vir de malas dos carros estacionados frente à fachada com a grande vitrine revelando o café em que toda sorte de gente se punha a espera de uma partida, assim como ele agora...

De um salto lhe ocorreu a deslembrança do tempo. Virando-se, constatou, no mesmo instante, que seu ônibus já não mais lá estava. O desespero ganhou a fome e a comoção aventurosa, instalando-se no íntimo. Sem ocorrer-lhe a possibilidade de esperar um próximo ônibus, sua atenção se voltou toda a pensar em possibilidades outras de tomar o rumo de sua casa. Foi ao telefone público que só agora se lhe mostrava logo ali, na outra esquina. Discou o três, três, cinco, cinco, cinco, sete, mas teve de repetir a operação numa ligação à cobrar, porque não tinha "fichas" consigo. A maneira de fazer a ligação à cobrar estava descrita numa plaquinha junto ao telefone. Mas ficou sem saber se fizera corretamente ou não, porque não teve sucesso. E mais, o que diria? Como explicaria a perda do ônibus?

Estava agora, de fato, por sua própria conta. O desespero já lhe era um sentimento anterior ao que agora tomava forma de uma necessidade premente de responder à situação. Melhor assim, pensou, sem telefonemas, e no mesmo instante, se lhe afigurou o raciocínio seguinte a este, numa lógica orgânica, imediata: faço eu mesmo o caminho até em casa.

Foi nisso que Solidão chegou. Se apresentou serena, ainda que muito séria e quieta. Sugeriu ao menino que desenhasse na mente o rumo que o ônibus faria, e lhe perguntou: você seria capaz de fazer esse caminho comigo? A afirmação foi veemente, apesar do receio pela companhia. O menino desconfiou de Solidão desde a primeira vez que a viu.

O trajeto era simples até. Mas a nova companhia de estar por conta agigantava a paisagem conhecida. As mediações de um corpo no mundo fazem-no pequeno. Além do que, os passos aos oito anos são especialmente curtos. Mas o menino estava confiante no próprio rumo, ensaiando-se naquela parceria solitária.

* * *

Seguimos pela rua até a ponte do Rio Cachoeira, onde reparamos seu cadáver triste. A aparência ensimesmada do rio, pela falta de correnteza, e o cheiro doce de podridão contrastavam com as fotos antigas da cidade que vimos no colégio, mostrando pessoas à margem, brincando e pescando. Sem comentar nada da impressão causada, adiantamo-nos um pouco a Solidão, e deixamos para trás a ponte. Rumamos pela Dona Francisca, uma das vias mais extensa do império, como também disseram no colégio. Ela atravessou cidades um dia, mas caminhamos dela apenas uma primeira subida bastante leve, em curva, em cujo topo beira até hoje a mata do morro do Boa Vista, que corta a cidade com uma verdura úmida e esperançosa. Solidão, agora novamente junto de nós, ficou impressionada, notava-se bem.

Logo adiante, dobramos à direita, na Castro Alves, onde havia na esquina uma mercearia, e a paisagem ali cheirava a pão. A Fome quis nos fazer companhia, mas estávamos tão imersos em nosso itinerário que desistiu.

A rua Castro Alves, aos oito anos, era uma reta extenuante. Insinuava uma subida tediosa, em cujo topo estava a esquina aguda do inicio da Água-Marinha, a nossa rua. Foi o trecho em que Solidão mais se apresentou, apesar e talvez justamente pela proximidade de casa. Quanto mais perto de seu fim, a Castro Alves mais se tornava erma, dividindo as margens novamente com a mata. O Medo acenou. Apressando os passos, o menino começou a dar pequenos saltos que foram lhe instigando uma inusitada vontade de voar. Entre pequenos saltos, contraia o corpo e sentia que assim podia retardar o próximo salto, e assim sucessivamente, permanecendo mais tempo no ar. Ah, isso facilitaria muito a chegada em casa!

Ainda extasiado pela descoberta, num sentimento de dominar a nova técnica, o menino experimentou um salto pronunciado. Perdeu, porém, a noção da força aplicada, e seu corpo se projetou justo em direção ao bueiro destampado da rua que recentemente ganhava pavimentação. Desesperou-se! O salto já havia sido dado, não teria mais retorno. As contrações do corpo não o ajudavam a mudar a direção, apenas retardavam o instante daquela duração agônica de queda na incerteza de um buraco certo diante de si. Lá adiante, a casa ainda pode ser vista. Foi Solidão que a reparou. O menino pode ouvi-la dizer “ali, tão perto! nunca mais”, quando a escuridade nos engoliu por inteiro.