Em sua antologia, Drummond dedica uma série de poemas ao tema Famílias que me dei. São poemas domésticos, mas nada domesticados. Impressões da infância, juventude, velhice acerca dessa condição - a família - de intimidade e estranhamentos, os mais básicos de toda e qualquer gente.
Lá pelas tantas, um poema intitulado Perguntas. Pérola entre pérolas, a polidez desta se destaca justamente pela figuração dos fantasmas, estes seres tão dados aos cantos de doces lares. É a seu fantasma que o poeta lança suas perguntas:
"Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço,
uma angústia do tempo."
Uma relação estendida no tempo, assentada num princípio que, embora sugira uma aliança, partilha antes de tudo a angústia. Presos um a outro num mesmo e "cativante" enigma que, se bem entendido, é um puro apelo ao amor.
"Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana."
Evidencia-se o duplo, essa singular relação nossa conosco mesmo, em cuja distância tão real quanto imaginária, cabem todos os mundos possíveis. O espelho fornece essa presença tão primeira e outra de si mesmo, que enceta o diálogo ao fantasma do poeta, este que lhe envia perguntas e divide segredos frente o reconhecimento que sua própria alma é entregue a condições tão terrestres e cotidianas: uma alma de carne e osso.
"Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que a navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia."
A pergunta revela finalmente um segredo acerca de itinerários que ao qual a alma errante do poeta o leva, e que pelo jeito, o leva à força. São lugares passíveis de memória. Aliados a fatos, acontecimentos, percepções e sentimentos de algum tempo - aquele mesmo, ao qual se agarra o homem com angústia.
"Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
deste repensamento;
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta."
O que espezinha o poeta é uma geografia, definitivamente. Algo de saudade? Um sofrimento? Pura e lancinante nostalgia? Um lugar que lhe falta não como distância, mas porque na sua escassez? O poeta repensa febril e, pelo que parece, a essa altura, o fantasma que reflete no espelho já é tão outro que, na sua intimidade, lhe brota o mais terrível estranhamento.
E finalmente, ocorre-lhe, ao fantasma, responder. O poema encerra pondo luz sobre o que, por todo o tempo, ressoa confuso nas perguntas do poeta: o amor, o amor, o amor.
"No voo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade,
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):
Amar, depois de perder."
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