terça-feira, 10 de novembro de 2009

Para um conto culinário

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i:
Em cada mão trazia ele saberes de uma culinária modesta mas incisiva. Aprendeu-a como uma arte de agradar intimamente, ainda que guardando distância. Fazia de todo apetite preliminares. Cada prato trazia algo poético, do desejo de alcançar o interior das pessoas, acarinhar a boca alheia e garganta adentro arrancar elogios untados, murmúrios e especialmente a saliva. Seu prazer aflorava por detrás de um sorriso maroto ao reparar no rosto entumecido de quem servia de suas delícias, a obsena expressão de gozo invadindo os sentidos imediatos aos lábios, à lingua, às narinas, sob o olhar aquecido e picante. Não apenas os apetites; punha a própria fome a seu favor.

ii:
Sua especialidade não estava tanto na sofisticação de ingredientes, mas no tratamento do que tinha à mão. Ervas, sementes, gorduras, caldos, e a combinação destes elementos entre si. Imaginava cada preparo como um ato criador de uma pequena fauna e flora, cuja vida dependia das alianças engendradas entre essas criaturinhas mágicas, os ingredientes e seus aliados tempêros. Inspirava-lhe o flerte morno entre a manteiga e a oliva, o apêgo das raspas de castanhas ao teso verde do alecrim, a lenta entrega das carnes à mistura de ervas, cebolas, pimenta, alho, canela e cardamomo, antes de fundí-las ao fogo. Cada qual, a seu tempo, exalando cheiros e estalos no ambiente. Uma liturgia de processos necessariamente simultêneos que, ao acaso, permitiam misturas outras, deslizes sutis de colheres entrepassando-se de uma panela a outra, desavergonhadamente. O melhor de suas receitas estava nessa heterodoxia vívida do improviso, combinando o inusitado em sabores.

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